Mitomania: afinal mentimos de mais ou de menos?

Será muito pouco provável encontrarmos alguém que não minta, todos os dias, várias vezes ao dia, nem que seja a si mesmo. Diz-se que a mentira tem perna curta, mas muitas vezes tem também muitas caras e muitas formas difíceis de associar. Em todo o caso, quando falamos em mentir a focamos no seu sentido pejorativo, e bem, porque compreendemos que é algo que não se deve fazer e portanto, a evitar.

Mas o ato de mentir existe se calhar muito mais vezes do que aquelas que conseguimos perceber à primeira vista. Quantas vezes mentiu a alguém que gostava como preparação para uma verdade mais dura que é preciso contar? Quantas vezes disse para si mesmo “hoje o dia vai correr mesmo bem” quando sabe perfeitamente que não dispõe de dotes de adivinhação para saber factualmente que o dia que tem pela frente vai, efetivamente, correr bem?

A mentira está enraizada um pouco em todos nós, que vamos gerindo os factos de maneira mais ou menos subjetiva, talvez para impedir que as nossas relações sejam tão mecânicas ou matemáticas. Se isso é bom ou mau, geraria uma discussão que não será para este artigo, mas para um próximo.

Certo é que, muito provavelmente por isso, que em pleno dia das mentiras lá passamos nós uns bons minutos a pensar e a engendrar aquela mentirinha que vamos dizer aos nossos amigos ou familiares que os deixe surpresos, mas que ao mesmo tempo seja credível o suficiente para não ser imediatamente desmontada por eles.

Em todo o caso, obviamente que a mentira pode ser negativa e como tal provocar dano no indivíduo e nas pessoas que o cercam. Em certos casos pode ser inclusivamente patológica, enquadrando naquilo a que chamamos de mitomania ou, se preferir, pseudologia fantástica.
Este comportamento pode derivar de várias trajetórias de vida, personalidades ou até perturbações, que, por exemplo por uma necessidade de aceitação ou autoproteção possam levar o indivíduo a enveredar num processo em que sinta a necessidade de contar aos outros a sua história de vida presente, passada ou futura numa narrativa falsa criando ou projetando com isso novas e mais espetaculares façanhas na esperança que sejam melhor aceites.

Assim, entre muitos outros fatores, podemos distinguir a mentira comum da patológica pela sua frequência elevada e pelo impulso em mentir constante e consistentemente.

Obviamente que este tipo de comportamento traz consequências.

Por um lado, sociais, onde o afastamento dos grupos de amigos e família pode ser uma realidade, pela quebra de confiança acerca do que a pessoa diz, provavelmente depois de ter sido apanhada várias vezes a mentir, em momentos onde se “entusiasmou” e a mentira foi tão rocambolesca que plantou dúvidas sobre a sua veracidade.

Este afastamento por parte dos outros pode conduzir a um isolamento que por si só pode ser terreno fértil para uma repetição deste comportamento, mentindo o indivíduo de maneira cada vez mais fantástica, o que poderá dificultar a criação de novos grupos sociais consistentes que, pela necessidade da geração de confiança mútua a que isso obriga, a pessoa seja mais fácil e rapidamente colocada em causa.

Por outro lado e face a este ciclo, um conjunto de consequências mais internas podem surgir, como o caso dos sintomas ansiosos e depressivos, fruto em parte deste isolamento social, na ausência de uma valorização que tanto era almejada pelo indivíduo com o ato de mentir, mas que no final de contas o acabou por descredibilizar.

A intervenção neste tipo de transtornos pode ser pluridisciplinar. No caso de sintomatologia muito intensa e já instalada, uma avaliação psiquiátrica pode ser relevante, com apoio medicamentoso para uma estabilização, se necessário, assim como a compreensão da presença de comorbilidade com outras perturbações.

A par, uma intervenção em terapia psicológica na vertente cognitivo-comportamental tem sido referenciada como uma boa solução, podendo ser um apoio importante, onde se reestruturam as crenças e comportamentos ajudando o indivíduo a alterar essas mesmas ações, controlando de maneira mais adequada os seus impulsos em cometer o ato de mentir, desconstruindo as vantagens que possam ser percepcionadas por ele na manutenção dessas ações, assim como uma maior compreensão dos danos, quer no indivíduo, quer para o seu projeto de vida desse tipo de comportamento e das suas consequências.

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